O ambicioso projeto do Aeromóvel no Aeroporto Internacional de Guarulhos, destinado a conectar o terminal à estação da CPTM, mergulha em uma crise ainda mais profunda do que se suspeitava. Uma inspeção técnica conduzida pela Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC) em 1º de setembro expôs que as etapas mais elementares de teste nem ao menos foram iniciadas, contrariando promessas contratuais da concessionária GRU Airport e do consórcio AeroGRU. Com quatro prazos sucessivos descumpridos desde fevereiro de 2024, o sistema automatizado de transporte – conhecido como People Mover – permanece sem uma data realista para entrar em operação.
A nota técnica da ANAC, divulgada recentemente, pinta um quadro alarmante de desordem gerencial: atrasos crônicos, opacidade nas comunicações e um planejamento que beira o inexistente. "O descumprimento é sistemático", afirma o documento, destacando que a falta de avanços compromete não só o cronograma, mas a viabilidade do empreendimento como um todo.
Etapas técnicas: do básico ao inviável
O ponto mais crítico apontado pela agência refere-se aos testes operacionais, delineados em uma sequência de marcos técnicos (de A a F) submetida em abril deste ano. Nenhum deles foi executado até o momento. O Marco A, a fase inicial e fundamental – batizada de "Operação Automática Manualmente Sincronizada Shuttle Bypass" –, estava agendada para 10 de julho, mas persiste inacabada mesmo após duas meses da vistoria.
Essa etapa serve de base para todos os procedimentos seguintes, como simulações automáticas, sincronização de veículos, validação do centro de controle, aprovações de segurança e, por fim, o transporte de passageiros. Sem ela, o projeto inteiro trava, deixando o Aeromóvel preso em um limbo técnico que questiona sua capacidade de decolagem.
Quatro adiamentos e um vazio de prazos
Lançado com a meta de operação em fevereiro de 2024, conforme o contrato de concessão, o sistema já sofreu quatro revisões de data: primeiro para outubro do mesmo ano, depois fevereiro de 2025 e, mais recentemente, agosto. A mais recente tentativa de ajuste, enviada em 29 de agosto – apenas dias antes de uma data prometida –, não ousou propor um novo horizonte temporal. Para a ANAC, essa evasiva reflete uma gestão deficiente, inadequada para uma obra de tamanha envergadura no principal hub aéreo do Brasil.
Operação parcial: uma ilusão contratual
Durante a inspeção, executivos da GRU Airport sugeriram uma largada em modo assistido, condicionada a uma autorização de segurança preliminar. A ANAC, porém, foi categórica: isso não atende aos termos do acordo. O contrato demanda automação total (nível GoA 4) e certificação de segurança máxima (SIL 4), padrões ainda distantes da realidade. Qualquer operação intermediária seria mera paliativo, sem valor para o cumprimento integral das obrigações.
Infraestrutura pronta, mas o 'cérebro' ausente
Curiosamente, as obras civis avançaram: estações, trilhos e plataformas estão quase concluídas. No entanto, os componentes tecnológicos – automação, integração e controles – seguem engavetados. Problemas recorrentes, como o elevador inoperante no Terminal 2 (flagrado em fiscalizações de 2024 e 2025), ilustram a desconexão entre o visível e o essencial. Três veículos já estão no pátio de manutenção, equipados com a propulsão pneumática desenvolvida pela Aeromovel, mas sem aptidão para uso real.
Sanções à vista: multas, devoluções e possível cancelamento
Diante da ausência de justificativas para mais um adiamento, a ANAC sinaliza ações duras. Multas pesadas, restituição de reajustes financeiros concedidos à concessionária e até a revisão da obrigatoriedade do projeto no contrato estão na mesa, amparadas nas cláusulas 2.15-A.7 e 2.15-A.8. "Os entraves superam o que foi reportado", conclui o relatório, alertando para riscos de inviabilidade sob a atual administração.
Gratuidade e agilidade: um sonho adiado para milhões
Concebido para revolucionar o acesso ao aeroporto, o Aeromóvel prometia ligar a Linha 13-Jade da CPTM aos terminais em apenas cinco minutos, de forma gratuita, automatizada e sem motoristas – uma bênção para os 18 milhões de passageiros anuais de Guarulhos. Hoje, ônibus improvisados consomem até 20 minutos em meio ao caos viário, expondo a frustração de quem depende do modal.
Mais de um ano e meio após o prazo inicial, o caso vira símbolo de promessas não honradas, erodindo a credibilidade do setor. A ANAC ainda não cronometrou suas decisões finais, mas o sinal é claro: sem correções radicais, o futuro do Aeromóvel pende por um fio. Para os usuários, a espera continua – e o aeroporto, o maior do país, segue refém de um projeto que poderia ter mudado tudo.